Há uns vinte mil anos atrás, um exemplar da subespécie de primata conhecida como Neanderthal estava tranquilamente em sua caverna, forjando sua lança, feita com lascas de pedra, quando foi surpreendido por um objeto perfuro-cortante de bronze, vindo de encontro à sua fronte, com violência ímpar, e tombou agonizando no chão. Suas últimas palavras (ou as primeiras), talvez foram: o quê ? Agora já não importava mais. Fora morto por um seu rival. Alguém que havia feito outra pergunta muito antes: por quê ?
No mundo das idéias é assim: semelhante ao velho-oeste daqueles filmes antigos de bang-bang. Vence quem “saca” mais rápido. Saca? Isto é o que fascina nos por quês. Aquele nó na garganta. O vazio no estômago. A secura na boca. Mas é aí que reside o problema. Sendo o “por quê” tão imanente à nossa existência, estamos mergulhados em um mundo de “comos” e “o quês”. E isto é de fácil compreensão. Charles Chaplin, em seu filme “Tempos Modernos” já sacava mais rápido que todo mundo: para que a engrenagem da modernidade funcione satisfatoriamente, precisamos somente dos “comos”: como opero esta máquina ? Como preencho este formulário ? Como devo responder ? . Os por quês são supérfluos, um luxo nos dias de hoje. São perca de tempo. Coisa de gente rebelde.
Tenho pensado nisto há algum tempo. Na urgência dos por quês nos dias de hoje. Precisamos de pensadores, de cães perdigueiros. Papo furado? Não. Imaginem o que é a Medicina hoje: uma coletânea de por quês, boa parte mais ou menos satisfatoriamente respondidos. Imaginem se os grandes cientistas perguntassem somente “como” ?. Não existiria sequer insulina nos dias de hoje. O quê ? (outra interjeição imbecil) – diriam. Produzir remédio utilizando sangue de eqüinos ? Heresia. Alguém foi lá e fez. Indagou-se : “e por que não ?”.
Mas hoje criaram uma vacina poderosa anti por quês: o pragmatismo. Travestido de certo racionalismo, ele quer engessar as idéias, “aplainar” as colinas aonde nascem os sonhos etéreos. Domesticar o pensamento. É tentadoramente confortável. Estéril. Inodoro. Branco opaco. Sem dor (ao menos aparente).
Às vezes penso que homens como Sócrates e Aristóteles não teriam lugar nos dias de hoje. Imagine só: lá estaria Sócrates, em sua caminhada matinal pelo jardim de sua casa, quando surgiria ofegante, correndo desde dentro de casa, uma senhora com a face rosácea, gritando: - Seu Sócrates, não vai sair sem levar a conta de telefone. - Ela vence hoje ! Pronto. Lá se foram todas as idéias que fervilhavam na cabeça do pensador. Malditas contas e compromissos e sinais fechados e sirenes de toda sorte. Será que ainda tenho um corpo, ou estou contido nO corpo ?
Então poderiam questionar: Mas não estamos na era tecnológica ? A internet não cresce vertiginosamente, assim como as empresas de tecnologia? Não estamos mais além do que aquém como seres humanos? Temo que não. Não estamos além. Respondemos quase todos os “comos”. Quase nenhum por que que valha a pena foi equacionado. Por que existimos ? É só um dos mais elementares e antigos por quês sem solução. Mas já sabemos o “como” existimos e até o manipulamos. Criamos clones, isolamos genes. O como é cartesiano, frio, insensível. O por quê nos deixa desconsertados. Exemplo ? Por que tantos passam fome, quando se gasta um trilhão de dólares anualmente em armamentos em todo o mundo ? Duvido que alguém não se inquiete com esta questão. E poucos conseguem respondê-la satisfatoriamente. A resposta é tão obviamente sórdida que não quero me deparar com ela.
Faça um teste. Em nossas próprias famílias temos exemplos disto. Minha avó dizia que misturar manga com leite era fatal. Por algum tempo acreditei nisto. Até que um dia o eu-menino viu alguém pedir a tal poção venenosa em uma lanchonete. Jeito estranho de se matar (pensei). Se soubesse perguntar por quê, se fosse eu instruído para tanto, desde a mais tenra infância, quando a vovó disse: “Manga com leite mata”, teria logo perguntado por quê, e a vovó teria que arrumar uma explicação ou admitir que não a tinha. Ou até mesmo responder: porque minha mãe disse. Não seria uma resposta satisfatória. Mas já apontaria para uma solução. Eu poderia emendar outra pergunta: “sua mãe era médica, vovó?” ou “por que ela concluiu isto?”
Questionar é importante. Poderia até parafrasear Camões: “ questionar é preciso, viver não é preciso”. Até porque questionar é navegar pelo pensamento. Teoria da Conspiração é somente uma maneira de brincar com questões existenciais. Ou nada existenciais. É poder brincar de descobrir, voltar a cultivar o campo fértil da imaginação de criança, que nem às crianças são reservadas hoje em dia. Isto porque os vídeo-games da vida não permitem imaginar. Já trazem o cenário, a história e o enredo prontos. À criança só cabe aderir. Não pode opinar. Basta aprender COMO “passar de fase”.
Nas minhas brincadeiras de criança, o mocinho matava o bandido e este ressuscitava. Por quê ? Porque a gente queria e determinava. Não tinha que justificar. Hoje é tudo tão lógico. Nada a ver com o mundo infantil. Você tem três vidas. Perdeu, não passa de fase. Sim senhor ! E quem disse que eu concordo com isso seu vídeo-game babaca ? Nos treinam para obedecer regras simplesmente porque são regras. Então poderiam questionar: Sendo assim, por quê as crianças de hoje são mais desajustadas ? Porque não fantasiam na hora certa. Não podem fazer-de-conta. Mais tarde os psicotrópicos cuidam disso. A infância é tão árida. Cheia de obrigações, agenda lotada. O menino não tem tempo para olhar pro céu e perguntar: Por que aquela estrela está sempre alí ? Afinal, amanhã tem aula bem cedo. Depois o inglês e a natação e o karatê e já é hora de dormir.
Já brincou de adivinhação ? Como era bom. Hoje é tolice ! Aposto que um menino de hoje agiria assim: - O que é, o que é: cai em pé e corre deitado ? – Peraí que eu vou entrar no Google. Que tristeza ! Nem se dão ao trabalho de cogitar o que seria. O Google dá a resposta pronta. Ave Google ! Preguiça de imaginar. É de arrepiar.
Há dois mil e quinhentos anos foi dito: “ Penso, logo existo”. Hoje o mote é outro: “Consumo, logo sobrevivo”. Não quero pensar. Somente ter grana pra pagar as contas. - O QUE você quer ser quando crescer ? - RICO. Então assalte um banco. Isto não é o que você QUER SER, mas o que você QUER TER (dinheiro). Todo mundo quer ser o Ronaldinho ou Kaká. Ninguém quer ser Van Gogh ou Machado de Assis. Afinal, esses caras morreram “duros”.
Bom conhecer melhor teu racicínio, Ruy. Gostei desse texto, muito.
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